Bocage e o Café Nicola – Apontamentos para uma “estória”



Café Nicola em Lisboa Lugar de intercâmbio de ideias, debates literários e propaganda de opiniões, é assim que podemos definir um dos cafés mais frequentados do séc. XVIII – o Café Nicola. O Café Nicola pertence a um tipo de estabelecimento com o seu charme característico, que marcou diferentes épocas, foram ponto de encontro e, muitas vezes, de partida para movimentos sociais, políticos e culturais. Pela porta de Cafés como este, “A Brasileira”, o “Marare”, o “Martinho da Arcada”, entre tantos outros, passaram algumas das mais emblemáticas figuras públicas. Hoje, alguns vão subsistindo, constituindo-se como verdadeiros refúgios onde ainda se consegue imaginar o seu passado vibrante. Praça D. Pedro IV LEGRAND, Charles, fl. ca 1838?-1850 Praça de D. Pedro em Lisboa / Legrand; lit. De Mnauel Luiz In: Universo Pittoresco. –Lisboa. – N. 10 (1839), extratexto entre p. 144 e 145 O Café Nicola é por excelência um dos cafés mais literários de Lisboa.. Existe desde finais do século XVIII. Fundado em 1787, no Rossio por um italiano, Nicola Breteiro, é um dos estabelecimentos mais antigos de Lisboa. É referenciado na «Gazeta de Lisboa» nesse mesmo ano e, o mesmo periódico, menciona uma «liquidação da loja grande de bebidas do Café Nicola», em Julho de 1794. Neste botequim vendiam-se cafés e refrescos e era um local frequentado por jacobinos e maçonicos. Tendo como alcunha “Academia”, devido ao largo leque de intelectuais que o frequentavam, o Nicola teve um frequentador que se destacou por entre todos os outros. Esse homem foi Manuel Maria Barbosa du Bocage. Cara com semelhanças de besbelho […] Quadro de Fernando Santos – «Café Nicola» No Nicola, Bocage amaldiçoou o seu inimigo ex-padre José Agostinho de Macedo e aí disse a um amigo «Pena de Talião», uma sátira ao mesmo. Terá sido, também, no Nicola que Nuno Pato Moniz redigiu o poema cómico “Agostinheida”, que ridicularizou o mesmo padre. Bocage declamava neste estabelecimento sonetos improvisados, atraindo uma pleiade de intelectuais e políticos. Era um local de tertúlia. Mesmo depois da morte de Bocage, o seu grupo de amigos continuou a frequentá-lo e aí se obrigaram as tertúlias. Olha Marília como flautas dos pastores […] Quadro de Fernando Santos – «Café Nicola» Tinha um empresário, José Pedro da Silva, que ajudava em tudo o que podia os poetas e que muito valeu a Bocage nas horas de necessidade, pois, já doente e pobre, nos seus últimos anos de vida, a ele ficou a dever a sua subsistência tendo sido inclusivamente este benfeitor que pagou o seu funeral. José Pedro da Silva, que atende cuidadosamente os poetas e intelectuais, resolveu entrar no negócio da restauração abrindo ele próprio um café cujo nome também faria história: “O Botequim das Parras”. Um dos episódios mais engraçados da vida deste autor aconteceu precisamente à frente do Nicola: conta-se que um policial lhe perguntou quem era, donde vinha e para onde ia, ao que o poeta espirituoso respondeu: “Eu sou Bocage Venho do Nicola Vou p ‘ro outro mundo Se dispara a pistola”. Sou o poeta Bocage, venho do café Nicola […] Quadro de Fernando Santos – «Café Nicola» Em 1825, o botequim foi trespassado por Nicolau Breteiro a Rosa Maria de Athayde, mas o negócio não lhe correu bem e em 1829, mais uma vez a «Gazeta de Lisboa» anuncia a trespasse do estabelecimento com o seu recheio «de líquidos, bilhar e jogo de gamão». Devido à pressão política que se faz sentir, e aos constantes confrontos dos seus frequentadores com a polícia, o Café Nicola é obrigado a encerrar em 1834. A loja foi trespassada ao sombreireiro Dias. No início do século XX, aí foi instalada a Ourivesaria Xavier de Carvalho. Ocuparam também o local a Livraria de Francisco Arthur da Silva, em 1837, e o “Sallon de la Mode” de Francisco Salles Ramos. Joaquim Fonseca Albuquerque, um dos antigos sócios do “Café Chave d’Douro”, adquiriu o espaço, em 2 de Outubro de 1929. Tornou, então a ser um Café, de nome Nicola para evocar a sua tradição e manter a aura do estabelecimento frequentado por artistas e intelectuais. Malhoa, entre outros, por aqui também passou. A nova fachada do Café, realizada em 1929, é do traço de Norte Júnior. A decoração do interior era neoclássica. As telas foram executadas pelo pintor Fernando Santos e a estátua de Bocage foi esculpida por Marcelino Norte d’Almeida. Café Nicola (na actualidade) Em 24 de Dezembro de 1935, foi encomendada ao arquitecto Raul Tojal uma redecoração de interiores. Este deu-lhe um estilo moderno, déco e geométrico fazendo a transição dos anos 30 para os anos 40, aspecto que ainda mantém. As telas nas paredes do interior foram retiradas pelos quadros atuais a óleo do mesmo pintor, Fernando Santos, que descrevem cenas da vida de Bocage. Só a escultura de Bocage e a fachada se mantiveram intactas. Retornaram as tertúlias ao café, entre as quais se destacam as tertúlias de Cassiano Branco. Os seus novos proprietários, a família Albuquerque, decidem marcar a diferença criando o seu próprio café. Tal foi a ligação de Bocage com este Café, que estes empresários usaram a sua imagem como o símbolo da marca de cafés Nicola. Hoje, essencialmente frequentado por turistas, é pontualmente palco de lançamentos de livros e tertúlias. Recentemente remodelado, o restaurante localizado na cave, cuja decoração ficou a cargo de Graça Viterbo, mantém mobiliário original de 1935 e oferece serviço de almoços e jantares. De Bocage perdura a memória da sua passagem por aqui, imortalizada pelos quadros das suas paredes no interior, enquanto a sua eloquência, de resposta sempre pronta e mordaz, deu origem às múltiplas anedotas que o tornaram tanto, ou mais célebre, que a sua própria poesia. Vida e anedotas de Bocage. Lisboa, Emp. Literária Universal, 1937 Capa de Alfredo Morais Com este artigo pretende divulgar a faceta mundana de Bocage e registar as tertúlias que fizeram história em Lisboa; Quanto a Bocage, a ele voltaremos, para vermos como era mordaz, senão mesmo “venenoso”, nas suas diatribes com os outros confrades que não lhe “caiam em graça”. Saudações bibliófilas Bibliografia DIAS, Marina Tavares – Os cafés de Lisboa, 2.ª ed., Lisboa, Quimera Editores, 1999. MASCARENHAS, João Mário e RÊGO, Manuela (Coord.) – O sabor dos cafés, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa , 2000, pág. 33.